Agência FAPESP
10/12/2018

Instalado 700 metros abaixo do solo na Coreia do Sul, o experimento Cosine 100 tem participação brasileira. [1]
Há quase 20 anos, o experimento Dama/Libra, localizado no Laboratori Nazionali del Gran Sasso, na Itália, começou a divulgar resultados de uma suposta modulação de sinais produzidos pela interação do detector com o halo de matéria escura da Via Láctea.

A matéria escura comporia cerca de 27% do conteúdo do universo, enquanto a matéria comum corresponderia a apenas 4%. Os 69% restantes seriam constituídos pela energia escura. Como a matéria escura interage muito pouco com a matéria comum, sua presença só foi inferida até agora a partir de efeitos gravitacionais sobre a matéria visível, como estrelas, galáxias e aglomerado de galáxias.

O modelo mais aceito afirma que a composição dos movimentos da Terra, do Sol e da própria Galáxia resultaria, para o observador terrestre, em um vento de matéria escura. Mais especificamente, em um vento de Wimps (Weakly Interacting Massive Particles – Partículas Maciças que Interagem Fracamente), partículas hipotéticas que seriam as principais candidatas à matéria escura.

Durante a translação anual da Terra, os sinais da interação do detector com os Wimps aumentariam quando o planeta se deslocasse em sentido contrário ao do vento, e diminuiriam quando se deslocasse no mesmo sentido. Essa variação se daria de forma cossenoidal.

O Dama/Libra divulgou detecções de sinais, com taxa variando ao longo do ano de forma cossenoidal, o que corresponderia a uma assinatura de matéria escura. O problema é que, desde que isso foi anunciado pela primeira vez, nenhum outro experimento confirmou a suposta assinatura. Um ponto a ser ressaltado é que esses outros experimentos utilizaram diferentes materiais e técnicas de análise.

Para checar a discrepância entre os dados do DAMA/LIBRA e os dados dos outros experimentos, e para buscar indícios robustos da matéria escura, um novo detector, o Cosine-100, foi instalado 700 metros abaixo do nível do solo no YangYang Underground Laboratory (Y2L), na Coreia do Sul.

Artigo divulgando os resultados da tomada de dados dos primeiros 59,5 dias de operação do Cosine 100 foi publicado nesta quarta-feira (05/12) na revista Nature.

Nelson Carlin Filho, professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP) e dois orientandos constituem a participação brasileira na colaboração internacional Cosine 100. O trabalho tem apoio da FAPESP por meio do projeto “Procura da matéria escura: WIMPS e fótons escuros”.

“Os resultados dos primeiros 59,5 dias do Cosine 100 não confirmaram os sinais divulgados pelo Dama/Libra. Os resultados obtidos não correspondem a uma assinatura de Wimps”, disse o pesquisador à Agência FAPESP.

Carlin enfatizou que essa negativa é tanto mais importante na medida em que o Cosine 100 utiliza como detectores cristais de iodeto de sódio (NaI), o mesmo material usado no Dama/Libra. “É o primeiro resultado publicado de um detector desse material com tamanho e sensibilidade suficientes para investigar a região dos sinais do Dama/Libra”, disse.

“Não estamos afirmando que os pesquisadores do Dama/Libra simplesmente erraram. Eles podem ter captado uma modulação periódica de sinais reais. Porém, a menos que o modelo de matéria escura seja significativamente modificado, há pouca chance de que esses sinais possam ser atribuídos a interações com Wimps. De qualquer forma, nosso trabalho está apenas começando. Vários anos de tomadas de dados serão necessários para confirmar ou refutar totalmente a modulação anual do Dama/Libra”, disse.

O detector do Cosine 100 é constituído por oito cristais de iodeto de sódio dopados com tálio (Tl), compondo uma massa total de 106 quilos. Cada cristal é acoplado a dois fotossensores destinados a medir a quantidade de energia nele depositada. E o conjunto todo é imerso em 2200 litros de líquido cintilador, cercado por cobre, chumbo e cintiladores plásticos.

Toda essa blindagem e o fato de o detector estar instalado 700 metros abaixo do solo se destinam a reduzir ao mínimo as perturbações causadas por raios cósmicos (múons), pela radiação cósmica de fundo (fótons remanescentes do universo primordial, detectados na faixa de micro-ondas) e por emissões de partículas dos próprios materiais que compõem o equipamento.

“A probabilidade de ser observada a interação de uma partícula de matéria escura com o material do detector é mínima. Além da blindagem, é preciso analisar a forma dos sinais, para que sejam descartadas as contribuições dos vários fundos”, disse Carlin.

A partir de um tratamento estatístico muito sofisticado utilizando o modelo padrão para o halo de matéria escura, com simulações de Monte Carlo e outros recursos, o Cosine 100 definiu uma curva considerada o “limite de exclusão” para interações entre as Wimps e os núcleos do material do detector.

Esse limite corroborou e precisou limites estabelecidos pelos experimentos anteriores. A curva é disposta em um sistema bidimensional de coordenadas cartesianas. No eixo Y, são anotadas as seções de choque, que informam de maneira simples as probabilidades de ocorrência das interações; no eixo X, as massas das supostas Wimps.

Qualquer evento cujas coordenadas possam ser plotadas abaixo do limite de exclusão é candidato à interação Wimp/núcleo. Qualquer evento situado acima não obedece às condições necessárias para caracterizar a interação, conforme o modelo (veja a figura a seguir).

“Os sinais do Dama/Libra [as áreas pontilhadas em vermelho e azul] ficaram acima do limite de exclusão. Notem que, além de utilizar detectores compostos pelo mesmo material empregado no Dama/Libra (cristais de iodeto de sódio), o Cosine 100 valeu-se de técnicas de seleção de eventos semelhantes. Portanto, discrepâncias de resultados devidas a diferenças nos experimentos foram minimizadas. Não encontramos matéria escura e descobrimos que as medidas do Dama/Libra não são consistentes com o modelo padrão para o halo de matéria escura”, disse Carlin.

Do que é formada

A existência da matéria escura é hoje assumida de maneira praticamente consensual pela comunidade científica. As primeiras evidências surgiram em 1933, com os estudos sobre velocidades de rotação de galáxias e aglomerados de galáxias feitos pelo astrônomo suíço Fritz Zwicky (1898-1974).

Zwicky percebeu que as velocidades eram maiores do que deveriam ser de acordo com a massa luminosa observada. E que, portanto, deveria existir um outro tipo de material, que ele chamou de “dunkle Materie” (“matéria escura”, em alemão), cuja contribuição gravitacional estaria afetando as velocidades.

Nos anos 1970, a astrônoma norte-americana Vera Rubin (1928-2016), fez um estudo sistemático das velocidades de rotação das galáxias, que confirmou a hipótese de Zwicky. Os cálculos bastante rigorosos de Rubin, confirmados por estudos subsequentes, mostraram que as galáxias devem conter pelo menos de cinco a 10 vezes mais matéria escura do que a matéria comum.

Hoje, com base nas velocidades de rotação das galáxias e em outras evidências, como as características das lentes gravitacionais de Einstein e da radiação de fundo de microondas, a proporção aceita para a composição do Universo é de, aproximadamente, 4% de matéria comum, 27% de matéria escura e 69% de energia escura.

Se a existência da matéria escura se tornou praticamente inquestionável, a questão é determinar sua constituição. O modelo baseado em Wimps ainda é o mais aceito. Essas partículas interagiriam com a matéria comum apenas por meio da interação gravitacional e da interação nuclear fraca. Daí o fato de, até agora, não terem sido consistentemente detectadas. A não detecção vem motivando modelos alternativos, como os dos áxions ou dos fótons escuros.

“Nada impede que a matéria escura seja constituída por vários elementos diferentes”, disse Carlin. “Há muito trabalho pela frente. De nossa parte, o Cosine 100 está dando ainda os primeiros passos. O próximo passo, muito importante, é tentar reproduzir ou descobrir que não pode ser reproduzida a modulação anual. Isso já está em andamento. Além disso, está em preparação a fase 2 do experimento: o Cosine 200, com 200 quilos de cristais, a ser instalado em outro local na Coreia do Sul.”

O artigo An experiment to search for dark-matter interactions using sodium iodide detectors (doi: https://doi.org/10.1038/s41586-018-0739-1), da Colaboração Cosine-100, está publicado em: www.nature.com/articles/s41586-018-0739-1. [2]

[1] Crédito da imagem: Divulgação.

[2] Esta notícia científica foi escrita por José Tadeu Arantes.

Como citar esta notícia científica: Agência FAPESP. Novo detector não confirma supostos achados sobre a matéria escura. Texto de José Tadeu Arantes. Saense. http://www.saense.com.br/2018/12/novo-detector-nao-confirma-supostos-achados-sobre-a-materia-escura/. Publicado em 10 de dezembro (2018).

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