Antônio Murilo Macedo
09/02/2018

Detalhe do quadro de Salvador Dali “A Persistência da Memória”. [1]
A mecânica quântica é notória por desafiar nossa intuição e percepção do funcionamento do mundo físico, que por sua vez é obtida através da observação direta de fenômenos na escala macroscópica, como o movimento de uma bola em um jogo de futebol ou a queda de um copo de uma mesa. A partir dessas observações inferimos intuitivamente, por exemplo, que os objetos que nos cercam devem ter propriedades bem definidas, como massa, posição, velocidade, etc. Com um pouco mais de treinamento científico, aprendemos que se essas propriedades forem conhecidas com precisão podemos prever como os objetos se movem no espaço através das leis de Newton. Em resumo, nossa compreensão intuitiva do mundo macroscópico é baseada essencialmente na premissa de que ele contém os elementos de uma realidade objetiva, independente de nossa ação como observadores. É exatamente esta premissa que está em conflito com a interpretação vigente da mecânica quântica.

Para entender como a mecânica quântica desafia nossa percepção da existência de uma realidade objetiva, vamos considerar um exemplo simples de um objeto e apenas duas propriedades: sua posição espacial e sua velocidade. Do ponto de vista clássico, nada impede que essas propriedades sejam medidas simultaneamente com precisão arbitrariamente alta de modo que poderíamos inferir que elas são elementos de uma realidade objetiva, isto é, independentes do processo de medição. Na mecânica quântica, o princípio da incerteza de Heisenberg estabelece que há um limite superior para a precisão destas medições, visto que posição espacial e velocidade são grandezas complementares, ou seja, não podem ser determinadas simultaneamente de forma absoluta (precisão arbitrariamente alta). A implicação filosófica deste fato é que de acordo com a mecânica quântica a posição espacial e a velocidade de um objeto não são elementos de uma realidade objetiva, em outras palavras o objeto não possui essas propriedades antes da medição. A mesma análise poderia ser feita para outros pares de variáveis complementares, como a energia de um fóton e o tempo de sua emissão ou detecção.

A situação fica ainda mais interessante do ponto de vista filosófico quando consideramos a noção de entrelaçamento quântico, que é um tipo especial de correlação quântica entre duas ou mais partículas que se mantém mesmo quando as partículas são separadas por grandes distâncias. A conexão chave entre o entrelaçamento quântico e a existência de uma realidade objetiva local foi apresentada no famoso artigo de Einstein, Podolsky e Rosen (EPR) [2]. No EPR foi estudado um sistema composto de duas partes, A e B, de modo que o entrelaçamento quântico mantinha preservadas as somas das posições QA + QB = 0 e a diferença dos momentos lineares (massa vezes velocidade) PA – PB = 0. As combinações soma das posições e diferença dos momentos não são pares complementares e portanto podem ser medidos simultaneamente com precisão arbitrariamente alta, ou seja podem ser considerados elementos de uma realidade objetiva. O argumento central do EPR é que se as duas partes são separadas por distâncias grandes o suficiente para que nenhuma ação causal possa afetar medições locais, então podemos medir localmente com precisão arbitrariamente alta, por exemplo, a posição de A (QA) e o momento de B (PB). Por causa da lei de preservação das somas das posições e da diferença dos momentos, inferimos os valores absolutos de PA e QB. Desta forma todas as grandezas teriam valores bem definidos antes das medições e poderiam ser considerados elementos de uma realidade objetiva, contrariando assim a interpretação vigente da mecânica quântica. Mas seria mesmo possível testar isto em laboratório? A resposta é um estrondoso sim, como veremos a seguir.

A chave do argumento do EPR era a hipótese da existência de um conjunto de variáveis escondidas que seriam responsáveis por conciliar as predições da mecânica quântica com a existência de uma realidade objetiva local. O físico John Steward Bell mostrou em seu famoso artigo de 1964 [3] que esta hipótese de variáveis escondidas locais levaria a um conjunto de desigualdades para medições feitas em sistemas entrelaçados que seriam violadas pela mecânica quântica. Portanto os físicos teriam que escolher entre a mecânica quântica e uma teoria com variáveis escondidas locais permitindo uma realidade objetiva. A decisão veio através de um conjunto espetacular de experimentos conduzidos pelo físico francês Alain Aspect e colaboradores [4] que estabeleceu de forma definitiva que as desigualdades de Bell são violadas em sistemas quânticos. A vitória da teoria quântica sobre a visão realista ingênua da física clássica é talvez um dos maiores triunfos da física teórica.

Apesar do contundente sucesso dos experimentos de Aspect e outros similares feitos depois, alguns tipos de entrelaçamento mostraram-se particularmente difíceis de controlar e medir. O entrelaçamento entre a energia de um fóton e o tempo de sua detecção ou emissão é um desses casos difíceis. A principal razão para a dificuldade vem da necessidade de alterar as correspondentes desigualdades incorporando efeitos como a precisão dos detectores e filtragem de eventos, o que torna a observação dos efeitos quânticos de violação muito mais difíceis pois requerem altíssima resolução tanto em medições de tempo quanto em frequência.

Em um artigo recente [5], pesquisadores da Universidade de Waterloo no Canadá conseguiram superar as dificuldades técnicas da observação direta do entrelaçamento de energia e tempo de pares de fótons gerados pela incidência de um pulso de laser em um cristal não-linear. No experimento os fótons de cada par são enviados por caminhos distintos, onde a energia ou o tempo de chegada são medidos. Os autores implementaram um sistema ultrarrápido de detecção de fótons (na faixa de femtosegundos = 10-15 segundos) que tem suficiente resolução para a verificação das violações das desigualdades corrigidas. As energias dos fótons foram medidas com técnicas avançadas de espectroscopia de fóton único.

Este notável experimento demonstra mais uma vez de forma contundente como a mecânica quântica é incompatível com as noções ingênuas de realidade local que ganhamos através de observações do mundo macroscópico. Desta vez são as noções de energia e tempo de detecção de um fóton, que poderiam em princípio fazer parte de uma descrição baseada em variáveis escondidas locais. Do ponto de vista mais prático, o controle e a detecção de entrelaçamento de energia e tempo abre as portas para uma série de aplicações em informação quântica, como cancelamento de dispersão, distribuição de chaves de criptografia quântica em alta dimensionalidade e sincronização quântica de relógios.

[1] Crédito da Imagem: Jimmy Baikovicius (Flickr) / Creative Commons (CC BY-SA 2.0). https://www.flickr.com/photos/jikatu/6484600049.

[2] A Einstein et al. Can quantum-mechanical description of physical reality be considered complete? Physical Review 47, 777 (1935).

[3] JS Bell. On the Einstein-Podolsky-Rosen paradox. Physics (NY) 1, 195 (1964).

[4] A Aspect et al. Experimental realization of Einstein-Podolsky-Rosen-Bohm Gedankenexperiment: a new violation of Bell’s inequalities. Physical Review Letters 49, 91 (1982).

[5] JPW MacLean et al. Direct characterization of ultrafast energy-time entangled photon pairs. Physical Review Letters 120, 053601 (2018).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Observando entrelaçamento de tempo e energia. Saense. http://www.saense.com.br/2018/02/observando-entrelacamento-de-tempo-e-energia/. Publicado em 09 de fevereiro (2018).

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