Antônio Murilo Macedo
08/09/2017

Representação artística de um observador: “The Watcher”. [1]
Observar é, talvez, um dos atos mais naturais do ser humano. Crianças aprendem observando e depois imitando o comportamento de adultos. Observamos o comportamento de nossos amigos, parentes, vizinhos e até de animais domésticos nas mais variadas situações para entender seus hábitos e facilitar nossos relacionamentos com eles. Cientistas também usam a observação em ambiente controlado como uma maneira eficaz de extrair informação útil sobre um sistema em estudo. Observar é, portanto, um poderoso instrumento para o entendimento e posterior descrição objetiva de um determinado fenômeno. No entanto, o ato de observar, obviamente, perderia sua eficácia se ele de alguma forma interferisse no fenômeno observado. Por exemplo, se você deseja observar como seus filhos se comportam na sua ausência você não pode deixar que eles saibam quando estão sendo observados, pois isto mudaria seus comportamentos. A observação deve, portanto, ser um ato passivo e o menos invasivo possível. Claramente alguma interação é essencial para que informação útil seja extraída, mas assume-se que ela é pequena o suficiente para que seu efeito seja irrelevante na análise teórica do fenômeno observado. Todas as teorias clássicas de sistemas físicos foram montadas em cima desta premissa sobre o ato de observação.

A teoria quântica mudou completamente este paradigma ao colocar o ato de observação no centro da descrição teórica do fenômeno observado. Muitos dos aspectos exóticos dos fenômenos quânticos, como a dualidade onda-corpúsculo ou as correlações de longa distância denominadas emaranhamento, podem ser interpretados como oriundos do papel central atribuído à medição na emergência de certas propriedades físicas dos sistemas quânticos, tais como a posição e a velocidade de uma partícula dentro de uma caixa. Segundo a interpretação ortodoxa da mecânica quântica, essas propriedades sequer existem antes do ato de medição. Em outras palavras, você precisa abrir a caixa para que a partícula tenha uma posição bem definida dada pelo valor observado, e além disso, o processo é irreversível, ou seja se você fechar a caixa a partícula não volta ao estado anterior. Portanto, interpretar corretamente o verdadeiro papel do processo de medição em sistemas quânticos pode ser a chave para desvendar alguns dos mais profundos enigmas da atualidade, como a origem da irreversibilidade ou a forma correta de unificar as leis da termodinâmica com a mecânica quântica usando conceitos da teoria da informação.

A outra teoria da física onde a irreversibilidade desempenha um papel central é a termodinâmica. Desenvolvida no século 19, como parte do esforço para produzir máquinas térmicas (sistemas que realizam trabalho útil operando entre duas fontes, uma quente e uma fria) cada vez mais eficientes e assim alavancar a revolução industrial, a termodinâmica estabelece um conjunto de leis universais que regulam todos os processos em sistemas físicos. A conservação de energia em suas diversas formas é um dos enunciados da primeira lei da termodinâmica. A seleção do sentido natural dos processos espontâneos, ou seta do tempo, na direção na qual a entropia não decresce é uma das consequências da segunda lei. A produção irreversível de entropia em processos espontâneos é chave para o entendimento do funcionamento de máquinas térmicas, pois ela mostra que é impossível converter toda a energia disponível na fonte quente em trabalho útil e, portanto, o rendimento de uma máquina térmica, mesmo ideal, é sempre menor que 100%.

A pergunta natural que emerge quando comparamos as duas teorias que contém irreversibilidade em seus fundamentos (mecânica quântica e termodinâmica) é se podemos combiná-las de modo a prever fenômenos exóticos. Por exemplo, podemos usar as leis da medição de um sistema quântico no lugar das leis da termodinâmica para explicar o funcionamento de uma máquina quântica real que opere apenas através do ato de observação, ou seja sem qualquer outra fonte de energia e entropia? A surpreendente resposta é sim.

Um grupo de quatro físicos de universidades francesas publicaram um artigo na Physical Review Letters [2] onde descrevem uma máquina que funciona, ou seja, realiza trabalho útil, apenas através de um protocolo de medição, dispensando a necessidade de reservatórios térmicos. A ideia básica do processo é usar um tipo especial de medição para um observável que seja incompatível com a observação simultânea com precisão arbitrária da própria energia do sistema. A principal efeito ocorre quando o processo de medição coloca o sistema em um estado de superposição de autoestados de energia. Neste caso, a energia média do sistema é alterada pelo próprio ato de observação. Além disso, a irreversibilidade intrínseca do processo de medição produz entropia, de modo que temos uma máquina termodinâmica sem a necessidade de fontes térmicas. O resultado mais surpreendente, no entanto, é a existência de um regime de observação contínua, denominado de regime Zeno, onde a eficiência da máquina é próxima de 100%.

Os autores propuseram dois tipos de implementações experimentais para a máquina quântica movida a observação: uma cavidade eletromagnética e um circuito supercondutor. Ambas estão ao alcance da tecnologia atual, de modo que em breve poderemos ter experimentos reais da máquina quântica em pleno funcionamento. De qualquer forma, já podemos adiantar que os resultados deste trabalho abrem novos paradigmas para o entendimento e análise do funcionamento de máquinas no regime quântico de operação, onde as leis da termodinâmica operam combinadas com os princípios fundamentais da teoria quântica.

[1] Crédito da Imagem: Gôdinô (Flickr) / Creative Commons (CC BY-NC-ND 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/godino/11762247613.

[2] Cyril Elouard et al. Extracting Work from Quantum Measurement in Maxwell’s Demon Engines. Phys Rev Lett 118 260603 (2017).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Observar pode mover máquinas. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/09/observar-pode-mover-maquinas/. Publicado em 08 de setembro (2017).

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