Antônio Murilo Macedo
10/03/2017

Nanomotor que converte energia química em movimento rotacional de moléculas. [1]
O conceito de trabalho aparece na física clássica [2] tanto na mecânica newtoniana quanto na termodinâmica. Em ambos os casos trabalho é definido através da variação da energia do sistema, mas é na termodinâmica que o conceito adquire seu significado mais amplo e profundo. A chave para este entendimento emerge da observação, feita pela primeira vez por James Prescott Joule em 1843, de que calor pode ser convertido em trabalho e vice-versa. Em outras palavras, calor e trabalho são diferentes manifestações de uma única grandeza, a energia. Na termodinâmica o conceito de energia é muito mais amplo que na mecânica, pois incorpora todas as formas de energia, seja ela de natureza mecânica, eletromagnética, química, nuclear ou qualquer outra. O enorme poder da primeira lei da termodinâmica, que estabelece essencialmente que energia se conserva, resulta exatamente da necessidade de conhecermos todas as formas de conversão de energia quando fazemos o balanço de um processo termodinâmico que leva um sistema de um estado de equilíbrio para outro. Por exemplo, se em um experimento deixamos uma pedra cair do repouso em uma piscina, a análise termodinâmica do processo precisa levar em conta não apenas a variação de energia potencial gravitacional do sistema pedra-Terra, mas também o calor produzido na água, as ondas geradas na superfície e o próprio som produzido pela colisão da pedra com a água da piscina. Apenas com uma análise completa de todos os mecanismos envolvidos e da energia associada a cada um deles, observamos que a energia total do sistema se conserva. A lei de conservação da energia tem por esta razão sido uma ferramenta fundamental da física para a descoberta de novos mecanismos de conversão de energia e até mesmo de novas partículas.

Apesar do enorme sucesso da aplicação das leis da termodinâmica na análise de fenômenos da física clássica e quântica, a definição precisa do conceito de trabalho do ponto de vista da física quântica tem sido um enorme desafio e continua um problema aberto de importância fundamental. A questão central está ligada ao fato de que as leis da termodinâmica são proposições sobre valores médios e, portanto, se flutuações, ou seja, desvios da média, são observadas (como ocorre por exemplo em sistemas quânticos pequenos) então precisamos de uma descrição estatística mais detalhada dos processos envolvidos. As definições quânticas de trabalho e calor são peças centrais na construção desta descrição. Do ponto de vista da mecânica quântica, a principal dificuldade é que trabalho não é um observável do sentido usual, como a posição ou o momento linear de uma partícula, ou seja, não existe um operador trabalho [3]. Consequentemente a conexão usual entre observável e medição, ingrediente essencial para o sucesso quantitativo da teoria quântica, não é válida neste caso.

Um artigo recente [4] de um grupo de cientistas da Espanha, Suíça e Áustria apresentou um avanço significativo neste problema. Os autores mostraram a existência de um princípio quântico fundamental que proíbe a medição simultânea com precisão arbitrariamente alta de propriedades do trabalho quântico que reproduzam corretamente o limite clássico, obtido quando efeitos puramente quânticos são suprimidos do processo, e que também satisfaçam a primeira lei da termodinâmica. Estes dois aspectos do trabalho quântico seriam complementares no sentido quântico [5]. Esta proibição fundamental torna impossível uma definição universal de trabalho quântico que seja independente de contexto, ou seja de detalhes de como serão feitas as medições. No entanto, esquemas aproximados são possíveis e a questão central passa a ser a busca de protocolos gerais que produzam o menor erro possível nas medições das propriedades do trabalho quântico.

Uma das consequências importantes deste trabalho é a percepção de que a medição da substância de trabalho, por exemplo observar a gasolina durante o funcionamento do motor de um carro, pode afetar o rendimento da máquina se ela estiver operando no regime quântico. Intuitivamente o que foi estabelecido é que qualquer dispositivo usado para medir o trabalho quântico executado por uma máquina térmica perturba o processo de tal maneira que o rendimento da máquina é alterado. Esta dependência de contexto pode ter profundos impactos no desenvolvimento das leis básicas da termodinâmica quântica. Possíveis aplicações da teoria incluem a descrição termodinâmica do funcionamento de nanomotores moleculares e pinças óticas para manipulação individual de moléculas e átomos. O desenvolvimento de protocolos para maximizar o rendimento destes sistemas é sem dúvida um “tópico quente” da pesquisa contemporânea.

[1] Crédito da Imagem: AJC1 (Flickr) / Creative Commons (CC BY-SA 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/ajc1/6082457800/in/photolist-agubN5.

[2] A física clássica compreende as teorias da física que precederam a revolução da mecânica quântica. A mecânica newtoniana, a eletrodinâmica de Maxwell e a termodinâmica são exemplos de ramos da física clássica.

[3] Operadores na mecânica quântica são usualmente representados por matrizes. O hamiltoniano, por exemplo, é um operador (ou matriz) que contém a informação básica das diversas formas de energia do sistema.

[4]  M Perarnau-Llobet et al. No-go theorem for the characterization of work fluctuations in coherent quantum systems. Phys Rev Lett 118, 070601 (2017).

[5] O princípio da complementaridade estabelece que existem propriedades quânticas, como por exemplo as naturezas corpuscular e ondulatória do elétron, que não podem ser determinadas completamente em uma mesma medição.

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Afinal, o que é trabalho quântico? Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/03/afinal-o-que-e-trabalho-quantico/. Publicado em 10 de março (2017).

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