Bruno Carneiro da Cunha
06/11/2017

Interação fóton-fóton. O diagrama pode ser lido como uma história: as linhas onduladas — representando fótons — se aproximam, interagem, via as linhas retas — representando elétrons — e depois se separam. Cada vértice está associado à interação eletromagnética cuja probabilidade depende da constante de estrutura fina. Pelo exposto no texto, a interação fóton-fóton tem assim uma probabilidade da ordem de 1 em 1 bilhão. Por isso só tivemos confirmação experimental deste processo recentemente. [1]
Apesar do modelo inicial de átomo (de Demócrito) ter sido pensado como algo indivisível, aprendemos desde o início do século XX que átomos têm estrutura interna. Temos uma receita para “criar” um átomo: junte-se prótons e elétrons, “misture bem” — faça-os perder um pouco da sua energia — e pronto! Hidrogênio fresquinho. A explicação costuma saciar quem lê pela primeira vez sobre a evolução do universo: houve um momento, chamado de recombinação, onde o caldo universal esfriou o suficiente para criação dos primeiros átomos (essencialmente hidrogênio e hélio, em uma proporção de 3 para 1).

Porém, podemos fazer outra coisa, adicionando um pequeno (em termos de energia) ingrediente à receita: um próton e um elétron, com um pouco mais de energia em forma de um antineutrino (cerca de 1/400 da energia de repouso do próton), e temos um nêutron ao invés de um átomo de hidrogênio.

Tudo bem, o átomo de hidrogênio é estável, e o nêutron não. Após cerca de 8 minutos, o recém-formado nêutron vai decair nos seus ingredientes. Mas não é curioso que pensemos no átomo de hidrogênio como uma entidade com estrutura e o nêutron como “partícula”? Que a representação de um faça menção explícita aos seus ingredientes enquanto a do outro seja uma mera “bolinha de gude”?

A representação do modelo de átomo (de lítio) de Rutherford à esquerda, e o modelo de átomo (de hélio) de Bohr à direita. Ambos apresentam a estrutura do átomo, mas não a estrutura das partículas que compõem o núcleo. [2]
Note que, como já exploramos em um artigo anterior, nem um nem outro são partículas elementares: os dois têm estruturas: o átomo de hidrogênio tem uma série de estados de energia internos, suas várias raias de emissão funcionam como uma espécie de assinatura, nos permitindo identificar hidrogênio no Sol e no espaço interestelar.

Algumas séries de emissão para o átomo de hidrogênio. Em todas elas, continuamos com a noção que o elétron mudou sua configuração interna dentro do átomo, mas o átomo não perdeu sua característica. No caso do nêutron, por outro lado, o rearranjo dos quarks que o compõem leva o nome de “ressonância delta-zero”. [3]
Da mesma forma, o nêutron é formado de quarks (estes sim, elementares até onde podemos inspecionar), que podem se arranjar de maneiras diferentes. Porém o ponto continua: nestes novos arranjos (por exemplo, os bárions delta), os reconhecemos como uma outra partícula. Por que?

A razão pode ser resumida na hierarquia de razões 1:α24, onde

é a chamada constante de estrutura fina, um número sem dimensão. A hierarquia nos diz as razões entre as energias envolvidas na ligação eletromagnética em relação a energia de repouso (α2), e as energias envolvidas por conta dos efeitos relativísticos (α4). Como a constante de estrutura fina é um número pequeno, tal hierarquia nos diz que efetivamente um átomo de Hidrogênio é “quase” a energia de um próton e um elétron: a pequena diferença entre os dois pode ser facilmente revertida com adição de cerca de um décimo milésimo da energia de repouso do elétron, e assim se separam o elétron do próton.

Com o nêutron, por outro lado, precisamos de uma boa quantidade de energia para separá-lo nos seus constituintes: as massas de repouso dos quarks que o compõe é muito pequena, e o análogo da “constante de estrutura fina” para a força nuclear forte é na verdade grande. Grande parte da estrutura do nêutron vem da força nuclear forte, ou, em outras palavras, dos glúons que mantém os quarks coesos. Por exemplo: o bárion delta-zero (Δ0) tem a mesma composição do nêutron, mas sua energia de repouso é cerca de 30% maior. Este excedente vem da contribuição da força nuclear forte (via glúons). Ao contrário do que acontece com o átomo de hidrogênio, a diferença de energia entre o delta-zero e o nêutron é grande o suficiente para darmos-lhe nomes diferentes e o tratarmos como partículas distintas.

Esta hierarquia, ou outras similares, estão no coração da definição de partícula elementar. Muitas vezes, a distinção é feita de forma dinâmica, e não por base em uma “diferença intrínseca”. O grande avanço conceitual da física de altas energias nas últimas décadas do século XX foi reconhecer a importância da dinâmica no conceito: quarks, por exemplo, só se apresentam como uma boa descrição da natureza a energias suficientemente altas. Nas baixas energias que estamos acostumados nos fenômenos químicos, por exemplo, a descrição do núcleo como uma entidade sólida (a “bolinha de gude”) é mais que adequada.

Estas considerações servem como contexto para dois pequenos resultados dos últimos meses.

O primeiro é um resultado de agosto do ATLAS mostrando a primeira evidência direta da interação entre fótons — “espalhamento elástico” no jargão técnico [4]. O fenômeno tinha sido previsto desde os primórdios da teoria quântica, e calculado teoricamente com o advento da eletrodinâmica quântica. Na explicação corrente, a interação entre fótons vem da pequena probabilidade do fóton gerar um par elétron-pósitron, e estes sim interagirem antes de retornarem ao estado em que são fótons. Veja a figura acima para uma ilustração. Cada um dos processos depende crucialmente da constante  definida acima, e isso atesta a acuidade da descrição em termos de fótons e elétrons como entidades distintas.

Infelizmente, isso também nos proíbe de construir os sabres de luz de “Star Wars”: a interação forte entre as luzes dos sabres requer um valor de  muito maior que o apresentado pela natureza. Tais interações fortes podem efetivamente ocorrer dentro de meios materiais. Na ausência de outros agentes, um aumento do valor da constante de estrutura fina teria consequências catastróficas para a química como a conhecemos e até para a existência de elementos mais pesados.

Outro resultado interessante é um mapeamento recente da distribuição de carga elétrica no elétron feito pelo laboratório JILA na Universidade do Colorado [5]. Como dito acima, o elétron é uma partícula elementar, o que significa que ele pode ser determinado por sua carga, sua massa e seu momento angular intrínseco (spin). Graças ao valor pequeno da constante de estrutura fina, sabemos que as correções a essas quantidades devidas à interação eletromagnética são pequenas. Por exemplo, a relação entre o momento de dipolo magnético e o spin sofre uma pequena correção dependente de  que pode ser calculada usando métodos usuais de eletrodinâmica quântica e comparado com as medições. Neste caso a discordância entre teoria e experimento é menor que uma parte em um trilhão.

A mesma ideia de partícula elementar mais pequenas correções devidas à interação eletromagnética nos diz que o momento de dipolo elétrico associado ao elétron deve ser exatamente zero. A distribuição de carga elétrica no elétron deve ser de uma forma de esfera perfeita, pois qualquer desvio implicaria em uma estrutura que necessitaria de um modelo incompatível com a noção de particular elementar para explicá-la. Mostrar que uma coisa é zero em física experimental é como provar que uma coisa não existe: impossível, mas este tipo de medida ultra precisa serve para estudarmos a estrutura eletrônica em um ambiente distinto dos grandes aceleradores. O “zero” serve assim como uma utopia útil. No resultado recente, uma nova técnica permite encontrar desvios do valor esperado de até uma parte em um quatrilhão (1 seguido de 15 zeros). Um resultado positivo para o desvio não só vai destruir a ideia de partícula elementar como conhecemos, como também poderá ser usado como possível causa da assimetria entre matéria e antimatéria no nosso universo.

Assim se vê que, longe de uma noção filosófica modulada pelos significados da nossa linguagem, uma partícula elementar é uma construção que depende crucialmente de fatores dinâmicos. Na história dos avanços em física, ela nos serviu bem ao separar o mundo entre estados e transições. E este modelo se baseia na relativa pequeneza das interações eletromagnéticas.

[1] Crédito da imagem: Brews ohare (Wikipedia) / Creative Commons (CC BY-SA 3.0). URL: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Photon-photon_scattering.png.

[2] Crédito da imagem: Wikipedia / Creative Commons (CC BY-SA 3.0). URL: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Stylised_Lithium_Atom.svg e https://www.universetoday.com/46886/bohrs-atomic-model/.

[3] Crédito da imagem: OrangeDog (Wikimedia Commons) / Creative Commons (CC BY-SA 3.0). URL: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hydrogen_spectrum.svg.

[4] CERN. ATLAS sees first direct evidence of light-by-light scattering at high energy. URL: http://atlas.cern/updates/press-statement/atlas-sees-first-direct-evidence-light-light-scattering-high-energy. Publicado em 14 de agosto (2017).

[5] E Cartlidge. The electron is still round — for now. Science 10.1126/science.358.6362.435 (2017).

Como citar este artigo: Bruno Carneiro da Cunha. A pequeneza das coisas (de estrutura fina). Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/11/a-pequeneza-das-coisas-de-estrutura-fina/. Publicado em 06 de novembro (2017).

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